Risco de contaminação da água consumida pela população
A pandemia de Covid-19 começa a mostrar com mais clareza algo que só especialistas e as populações impactadas conheciam. A falta de saneamento básico e a má distribuição de água no país assustam. São 31 milhões de brasileiros que não têm acesso a uma rede geral de distribuição de água e a falta de acesso à água potável é uma realidade nas grandes favelas como a Rocinha, no Rio, ou Paraisópolis, em São Paulo. Praticamente impedidos de se precaver do novo coronavírus usando água e sabão com frequência, milhares de pessoas no país sofrem de doenças infecciosas como malária e dengue. Estudo apresentado no 30º Congresso da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) revela que a água consumida pelos brasileiros é passível de contaminação por protozoários, organismos resistentes ao cloro
Entre as maiores conquistas de saúde pública da história da humanidade, o saneamento básico e o abastecimento de água potável estão em xeque no Brasil. Uma pesquisa apresentada no 30º Congresso da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes) por cinco pesquisadores do Rio Grande do Sul revela um grande risco de contaminação da água que é consumida pela população com giardia e cryptosporidium, micro-organismos imunes à ação do cloro e de outras substâncias utilizadas no tratamento da água no estado.
Coordenado e apresentado pelo engenheiro químico Luciano Zini, o estudo aponta que a água dita potável pode apresentar uma maior contaminação em outros estados. De acordo com o pesquisador, a possibilidade de contaminação da água por protozoários é um problema de saúde pública extremamente grave, pois pode levar à morte de pessoas com baixa imunidade.
Apesar disso, até agora não havia um levantamento minucioso apontando a presença desses micro-organismos na água que abastece os municípios gaúchos. Essa é a primeira publicação a respeito com os dados nacionais do setor de Saúde, fora uma ou outra iniciativa restrita ao ambiente acadêmico.
Ao contrário das bactérias, que também são micro-organismos, os protozoários são resistentes à destruição por cloro
O estudo aponta que, dependendo das condições de abastecimento de água potável, saneamento e higiene, agentes causadores de doenças de veiculação hídrica como vírus, bactérias e protozoários podem ser transmitidos. E escancara uma realidade nacional: o processo de coleta e saneamento no Brasil é eficaz na questão bacteriológica, mas o mesmo não acontece com tanta eficácia na eliminação de protozoários.
Ao contrário das bactérias, que também são micro-organismos, os protozoários são resistentes à destruição por cloro. Eles não morrem e só podem ser removidos da água com a ajuda de uma barreira física para impedir que passem para a água tratada. “Eles são removidos posteriormente no processo de filtração”, explica.
Mestre e doutorando em Engenharia Química pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Zini integrou o último processo de revisão do padrão nacional de potabilidade no grupo de químicos como representante de todas as secretarias estaduais de saúde via Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Segundo ele, o nível elevado de contaminação da água é um obstáculo à utilização da barreira física: “o que dificulta a retirada é a qualidade da água bruta, o não tratamento do esgoto, as estiagens que aumentam, as concentrações de poluentes nos mananciais e os resíduos da pecuária lançados nos mananciais”, pontua.
Os principais causadores de diarreias em crianças com menos de cinco anos de idade são os protozoários giardia duodenalis e cryptosporidium parvum. Giardíase e criptosporidiose são as zoonoses causadas por esses micro-organismos.
No estudo, os pesquisadores gaúchos apontam a observação do aumento expressivo no número de casos. E a disseminação está principalmente vinculada “à falta de tratamento de esgoto e de dejetos das atividades pecuárias intensivas”, diz o documento. No conjunto do estado, atualmente, apenas 41,43% do esgoto é tratado.
Mas essa realidade não é uma mazela apenas gaúcha e brasileira. Em todo o mundo, nos últimos 28 anos, ocorreram 524 surtos em que a àgua destinada ao consumo humano foi a fonte de contaminação. Nesses episódios, giardia spp. e cryptosporidium spp. também foram os principais agentes identificados.
No caso de situações de diarreia, um fato preocupa. Muitas pessoas nessa condição esperam a cura natural da doença e só procuram auxilio em uma clínica ou posto de saúde caso o sintoma dure mais de um dia. Como na maioria dos casos os médicos não solicitam exames, o sistema de saúde fica sem dados importantes. Mais exatamente, “sem saber qual o agente etiológico, patogênico” originou a moléstia, afirma Zini.
Muito possivelmente a água contaminada é um dos principais fatores dessas diarreias e a falta de informações que esses exames deveriam apontar pode ser até letal, destaca. “Uma pessoa com HIV sem tratamento, no estágio da Aids, pode vir a óbito sem nem saber o real motivo” compara. Outras parcelas da população também podem ser afetadas. São os casos de crianças, idosos e transplantados que correm o mesmo sério risco de morte.
Zini, que desde 2015, atua como especialista em Saúde e engenheiro químico na Secretaria Estadual da Saúde (SES/RS), é vinculado ao Programa Vigiaagua, nas frentes de agrotóxicos na água para consumo humano e inspeções sanitárias no processo de tratamento.
Os projetos das estações de tratamento no Brasil, das décadas de 1970 e 1980, apresentaram avanços para o abastecimento de água nas cidades, mas negligenciaram os serviços de esgoto
Os projetos das estações de tratamento no Brasil são das décadas de 1970 e 1980, fomentados basicamente pelo Plano Nacional de Saneamento (Planasa), que foi um modelo centralizado de financiamento de investimentos em saneamento básico. Desde então, não houve grande alterações no setor.
Para o engenheiro civil Rafael Kopschitz Xavier Bastos, professor titular da Universidade Federal de Viçosa (MG), até o Planasa o saneamento do Brasil “era exercido de uma forma um tanto quanto fragmentado e pulverizado”. O modelo construído, na ocasião, pautou a criação das companhias estaduais de saneamento em todos os estados do país.
Um dos maiores especialistas no setor do tratamento e qualidade da água para consumo humano, Bastos ressalva, no entanto, que no período militar “naturalmente os processos não eram transparentes e democráticos”. O modelo foi imposto, rememora. “As companhias estaduais e a lógica do subsídio cruzado precisavam dos grandes sistemas”. Subsídio cruzado é aquele em que as grandes cidades, que são superavitárias, financiam solidariamente obras nos pequenos, deficitários.
O regime da época trabalhou para estrangular as cidades que não aderiram ao plano, que não entregaram as suas concessões para as novas companhias estaduais. “Durante anos, não tinham acesso a financiamento, por exemplo”, diz ao lembrar que poucos municípios permaneceram com as suas empresas de saneamento.
Para o professor, que contribuiu na estruturação e consolidação da Vigilância em Saúde Ambiental no Brasil, se o Planasa apresentou avanços para o abastecimento de água nas cidades, negligenciou, porém, os serviços de esgoto. “Isso criou um descompasso enorme entre a infraestrutura hoje existente de abastecimento de água e a estrutura tão precária de tratamento de esgoto”, explica. Ele lembra que o “ocaso do Planasa” começou exatamente no final do período ditatorial, especialmente com a extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH), que era uma das fontes de financiamento.
O presidente nacional da Abes, Roberval Tavares de Souza, concorda que houve um vácuo entre o final do Planasa e o surgimento da atual legislação do saneamento promulgada em 2007. “O grande problema é que as linhas de financiamento ficaram pouco acessíveis”, aponta. No começo dos anos 2000, “tivemos a colocação de muito dinheiro na praça”, mas muitas empresas de saneamento não tinham condições de acessar esses recursos, recorda.
As fontes de abastecimento de água devem ser protegidas da contaminação, mas isso não ocorre nas principais cidades do país onde menos de 50% dos esgotos domésticos são tratados